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O IBS e a CBS incidem sobre o consumo. São as famílias que, em última instância, arcam com o ônus econômico desses tributos, calculados “por fora” do preço, com transparência, na aquisição de bens e serviços. Cada empresa é um elo na cadeia produtiva e paga o IBS e a CBS somente sobre o valor adicionado naquela etapa. Isso é viabilizado, do lado dos débitos, pela base ampla de incidência e, do lado dos créditos, pela não-cumulatividade plena.
Todas essas frases foram repetidas à exaustão durante a tramitação da PEC 45 e do PLP 68, hoje EC 132 e LC 214, e constituem a espinha dorsal do IVA. No processo legislativo, foi necessário traduzir essas características econômicas para linguagem jurídica. Na conexão entre Economia e Direito, optou-se por uma incidência mais tradicional, na nossa cultura jurídico-tributária, que passo a explicar.
Nome dos tributos: Os novos tributos foram batizados de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e de Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), equivalentes ao Goods and Services Tax(GST). Não são nomeados “Imposto sobre Consumo” ou “Imposto sobre Valor Adicionado”, o que já é um sinal do desenho jurídico.
Fato gerador na EC 132: De acordo com o texto constitucional, o IBS incide sobre as “operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços” (inciso I do § 1º do art. 156-A da Constituição Federal). O IBS incide, também, sobre as “importações de bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou de serviços” (inciso II do § 1º do art. 156-A da Constituição Federal). O mesmo vale para a CBS (inciso V do caput e § 16 do art. 195 da Constituição Federal). Cada um desses vocábulos tem um conteúdo próprio: “operações”, “bens”, “serviços”, além do conector “com”, e as “importações”.
Estrutura da LC 214: A LC 214 dispõe sobre o fato gerador do IBS e da CBS, tratando os dois tributos em conjunto, como deve ser. O Capítulo II trata das operações, enquanto o Capítulo IVversa sobre as importações. Os Capítulos I e III trazem disposições preliminares e regras de apuração que se aplicam tanto às operações, quanto às importações. Todos esses Capítulos são do Título I do Livro I.
A redação final da LC 214 sobre o fato gerador ficou um pouco confusa, devendo o seu conteúdo ser obtido a partir de diversos dispositivos.
Fornecimento: O núcleo central da hipótese de incidência do IBS e da CBS é o “fornecimento” (do inglês, “supply”), que aparece pela primeira vez na LC 214. No inciso II do art. 3º, o “fornecimento” é definido com base no seu objeto: (i) no inciso I, é a entrega ou disponibilização de bem material; (ii) no inciso II, é a instituição, transferência, cessão, concessão, licenciamento ou disponibilização de bem imaterial, inclusive direito; e (iii) no inciso III, é a prestação ou disponibilização de serviço.
Bem ou serviço: Um pouco antes na LC 214, no inciso I do art. 3º, a definição de “bem” compreende os bens materiais e imateriais, inclusive direitos, enquanto a definição de “serviços”é residual, como qualquer outro objeto de operação que não constitua um bem.
O que vem primeiro? Há uma espécie de circularidade nessas definições que dificultam uma ordem lógica de concatenação. De um lado, fornecimento é definido a partir do seu objeto: bem material, bem imaterial ou serviço. De outro lado, serviço é definido negativamente, a partir do que ele não é. Não há uma definição positiva de operação com serviço na Lei Complementar.
Nossa definição de fornecimento: O fornecimento deve ser entendido como qualquer relação jurídica bilateral (pelo menos duas partes) e sinalagmática (com obrigações a ambas as partes). O fornecimento decorre de atos ou negócios jurídicos, mas com estes não se confunde. Não importa a forma jurídica, ou se o ato ou negócio jurídico é válido ou eficaz. Verificado o conteúdo econômico da atividade, há fornecimento. A separação das modalidades de fornecimento com base em seu objeto (bem material, bem imaterial ou serviço) é meramente didática.
Não basta fornecimento, o fornecedor precisa ser contribuinte: Diferentemente de outras normas tributárias, na LC 214, o fato gerador é completado pela definição de sujeito passivo. Não basta que tenha havido uma atividade econômica. Para que haja a incidência, esse fornecimento precisa ter sido realizado por contribuinte do IBS e da CBS. Outros países fazem essa combinação de critério material e pessoal diretamente no artigo do fato gerador. O Brasil tratou do sujeito passivo em artigo distinto.
Contribuinte: A definição de contribuinte na LC 214 requer uma interpretação cautelosa. Em particular, a alínea “a” do inciso I do caput do art. 21 define como contribuinte qualquer um que “desenvolve atividade econômica”, enquanto as alíneas “b” e “c” definem como contribuintesaqueles que realizam atividade econômica “de modo habitual ou em volume que a caracterize”, ou “de forma profissional”. No nosso entender, a alínea “a” seria dispensável. Na presença da alínea “a”, a expressão “atividade econômica” deve ser interpretada, justamente, como uma atividade recorrente, como consta da alínea “b”. Não se pode interpretar “atividade econômica” da alínea “a” como qualquer ato isolado, como a venda de um carro seminovo ou da casa própria, apesar de estas atividades, a rigor, consistirem em fornecimentos. Estamos considerando neste artigo, para simplificar, somente os contribuintes no regime regular (excluindo o SIMPLES e o MEI).
Operações onerosas: As operações e os fornecimentos, quando praticados por fornecedor no Brasil, são sinônimos. A hipótese mais comum é a incidência sobre operações onerosas, assim entendidas como os “fornecimentos com contraprestação” (“supply for consideration”). Alguns exemplos de atos ou negócios jurídicos que resultam em fornecimentos com contraprestação são a compra e venda, aluguel, cessão de uso e prestação de serviços, dentre outros. Vide art. 4º, caput e §§ 2º e 3º.
Operações não onerosas: A EC 132 não exigiu onerosidade para a incidência dos tributos. ALC 214 previu a incidência sobre operações não-onerosas, porém, de forma absolutamente excepcional, limitando-se às hipóteses previstas expressamente na própria LC 214. São situações que, comumente, envolvem o fornecimento de bens que não deveriam ter permitido a apropriação de créditos em sua aquisição ou produção, ou cujo crédito deveria ser “revertido” na transferência de bens a não-contribuintes. Vide art. 4º, § 1º, e art. 5º.
Importação: O fornecimento de bens imateriais e serviços por fornecedor estrangeiro para destinatário no Brasil é considerado uma importação (art. 64). No caso dos bens materiais, a mera entrada em território nacional constitui o fato gerador (art. 65). Esse último pode ser o único exemplo em que há incidência do IBS e da CBS sem que tenha havido um fornecimento.
Destino: O destino é a outra ponta do fornecimento. Geralmente, o destinatário e o adquirentesão o mesmo sujeito, isto é, quem paga por uma aquisição recebe o bem ou serviço. Contudo, pode acontecer de o destinatário ser distinto do adquirente, por exemplo, quando alguém compra um bem material para entrega a outra pessoa. O destino é relevante para determinar a alíquota aplicável e o ente federativo que receberá os recursos da arrecadação, além das importações.
Consumo: Não há uma definição clara de consumo na LC 214. Pode-se entender consumo como a outra ponta do fornecimento especificamente nas aquisições que não são destinadas ao desenvolvimento de atividade econômica. É consumidor: (i) via de regra, um adquirente não-contribuinte no regime regular; ou (ii) excepcionalmente, um adquirente que é contribuinte, mas adquire bem ou serviço destinado para uso ou consumo pessoal. Nas importações, o consumo também é mencionado na LC 214 como uma referência para destino, de modo que pode haver certa mistura entre esses dois vocábulos.
Revenda: Não há incidência na revenda de bens e serviços adquiridos para consumo, como na revenda de joias da família, ou de bem ou serviço adquirido por contribuinte para uso ou consumo pessoal sem apropriação de créditos.
Conclusões: Apesar de, economicamente, o IVA incidir sobre o consumo e, em princípio, ter seu ônus econômico suportado pelas famílias, no desenho jurídico, a incidência é sobre o fornecimento. O contribuinte não é o consumidor, mas sim o fornecedor. É ele que tem o vínculo com o Poder Público e é obrigado a pagar os débitos do IBS e da CBS. Quando o adquirente é, ele próprio, um contribuinte, ele apropria créditos do IBS e da CBS nas suas aquisições, em montante correspondente aos débitos pagos pelo seu fornecedor. E quando o adquirente é o consumidor, não há apropriação de créditos.
Essa mudança de paradigma – de “contribuinte econômico” distinto do “contribuinte jurídico” (na ausência de melhores expressões) – vai gerar uma série de mudanças no mercado. A empresa deixa de ser o “contribuinte econômico” e passa a ser um parceiro do governo na arrecadação de tributos que, na essência, são devidos pelo consumidor. Qual será o apetite para litígios nesse cenário? E nos fornecimentos B2B, que permitem créditos com base nos débitos pagos? Há, ainda, muitas perguntas a serem respondidas.
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